Nossas palavras paraplégicas confundem-se enquanto caminhamos sobre as inúmeras flores dos ipês rosa espalhadas pelas ruas da cidade. Ruas coloridas vestem-se de flores mortas. Tudo se tornou tão dúbio de repente. Êxodo de pétalas e células que o vento e o sangue carregam para outros lugares. Um dia, perderemos o controle de tudo. Já perdeu, mãe?
Seu cabelo esbranquiçado e seco entre meus dedos. Quando eu era pequena, você me dava banho de sol e penteava meus cabelos. Tentava me proteger do futuro de flores mortas. Não deu certo. Claustro sem deus. O mundo nunca me pareceu tão pequeno. Deserto de paroxismo. As células nunca mais disseram nada que eu e você gostaríamos de ouvir. Está me ouvindo, mãe?
Enquanto caminhamos pela rua dos ipês, seu corpo magro sorri e sente sede. Você nunca perdeu o sorriso. Eu me tornei muito mais cinza desde que você ficou doente. Um copo de água para hidratar a cura que nunca existiu. Já parou uma gota de chuva com a ponta da língua, mãe? A mesma língua que sente as drogas, a fome, a fé e o céu.
Repouso meus braços em seus ombros e penso no quanto eu queria lhe salvar desses dias tóxicos. Disfarço. Guardo as lágrimas no oceano do meu casaco. Estou me tornando um mar estagnado. Já se afogou, mãe?
Atravessamos outra avenida que não chegará a lugar nenhum. Entramos no carro que nunca chegará ao céu. Vamos para casa. Você precisa descansar e orar. Você sempre ora. Já se passaram quatro anos desde que tudo desabou e você ainda ora. A oração me intimida. Talvez, meu terço surdo seja de plástico, como o fio transparente por onde desce a droga que invade sua alma e corpo cansados. Deus acredita em quimioterapia, mãe?
texto originalmente publicado para o blog: FEBRE CRÔNICA